Voo eterno: 40 anos depois, recorde de João do Pulo emociona técnico
Pedro Henrique de Toledo, o Pedrão, lembra momentos após o feito histórico do brasileiro nos Jogos Pan-Americanos do México, em 1975. Perda ainda é sentida

Mundial em 1975 (Foto: Agência AFP)
É como se o tempo tivesse parado nos segundos em que João do Pulo sobrevoou os 17,89m no salto triplo. No Estádio da Cidade do México, sede o Pan de 1975, aquele era o sentimento de João Carlos de Oliveira e de seu técnico, Pedro Toledo. Mas segundos não pararam, e quarenta anos se passaram desde então. João virou João do Pulo, viu o ouro olímpico escapar de forma duvidosa, sofreu um acidente, perdeu uma perna e faleceu cedo. O recorde mundial já foi batido. Seu treinador está distante do atletismo brasileiro. Nada, no entanto, que seja capaz de apagar da cabeça dele aquele 15 de outubro.
João Carlos de Oliveira e seu técnico acordaram cedo naquela manhã. Era o dia da disputa do salto triplo nos Jogos Pan-Americanos da Cidade do México, e a dupla foi de carona com um repórter brasileiro até o Estádio Olímpico. No carro, estava também um outro atleta, Benedito Rosa Preta, que passou todo o trajeto chamando o amigo carinhosamente de João do Pulo. Acreditam que ele é o autor do apelido eternizado. Afinal, o saltador já havia vencido a prova do salto em distância e estava em destaque. Estava voando. O brasileiro de 21 anos achava graça, mas seguia tranquilo. Não tinha ainda a dimensão do que aquele dia representaria.
Um bom resultado na prova do salto triplo até era o esperado, mas não em tamanha dimensão. Mas aquele tal João nem sequer era considerado o melhor saltador do Brasil. Tinha à frente Nelson Prudêncio (dono de duas medalhas olímpicas). Foi no decorrer da competição que a possibilidade de voar mais que qualquer outro atleta surgiu de forma palpável. Naquela edição do Pan, 40 anos atrás, voou 17,89m e superou por 45cm o recorde mundial da época – do soviético Viktor Seneyev. O feito garante, até hoje, o recorde do salto triplo em edições Jogos Pan-Americanos. A partir dali, nem que quisesse poderia voltar para sua identidade antiga. Foi batizado novamente. Batizado como João do Pulo.

Quem viu de perto lembra. Era como se aquele João andasse no ar antes de saltar na caixa de areia. Deu pique, voou e bingo! O Brasil de Adhemar Ferreira da Silva voltava ao topo no triplo. O placar eletrônico - ainda não tão moderno como o atual - confirmava. A partir daquele momento, ninguém havia saltado mais longe que o brasileiro de Pindamonhangaba (SP). O corpo ainda estava repleto de areia, e João foi direto ao treinador. Incrédulo, chorou.
- Ele falou: ''Pedrão, meu Deus do céu... O que nós fomos fazer?''. Isso abraçado comigo, chorando já. Então foi uma festa espetacular. Já se vão 40 anos. Felizmente e infelizmente. Porque o nosso sonho era, depois que ele bateu o recorde do mundo do salto triplo, bater o recorde do mundo do salto em distância. E aí teve aquele desastre pavoroso... - conta o técnico Pedrão, já aos 76 anos, referindo-se ao acidente que encerrou a carreira do atleta aos 27 anos.
Na Vila dos Atletas, o brasileiro viraria a mais nova celebridade. Todos queriam conhecer de perto o inesperado novo recordista mundial. Mas o jovem teve seu tempo para celebrar. O técnico sabia que ele merecia seu momento e liberou a festa. Em sua memória, consegue resgatar flashes daquela celebração em solo mexicano.
- Foi uma loucura. Foi uma farra, meu Deus....Estavam lá Rui e Delmo, que eram dois irmãos que corriam. Estavam também o Benedito e o Nelson Prudêncio. E nós estávamos dentro de um apartamento. Eu não me lembro se tomaram cerveja, se não tomaram, se foi refrigerante... Para ter a música, eles mesmo cantavam um pagode, faziam uma bateria nas cadeiras e na porta. Essa foi a caixa de som. Depois eles deram uma saída também. Acho que aquilo ajudou a resgatar um pouco do amor e do orgulho de ser brasileiro. Mostrou para muita gente que, querendo, você pode. O João começou por baixo, como tantos outros - contou o treinador.
João do Pulo foi recordista por uma década. Em 1985, o americano Willie Banks pulverizou sua marca com 17,97m. Dez anos depois a marca voltou a ser superada, pelo atual recordista, o britânico Jonathan Edwards, com 18,29m.
TÉCNICO DIZ QUE JUÍZES ROUBARAM JOÃO EM MOSCOU 1980
No ano seguinte ao seu recorde mundial, João do Pulo disputou as Olimpíadas de Montreal 1976, e conquistou a medalha de bronze. Quatro anos depois, em Moscou 1980, voltou ao degrau mais baixo do pódio. Apesar de saltar próximo dos 18m, que seria um novo recorde, o salto não foi validado. Fiscais soviéticos anularam suas melhores tentativas. E os atletas da casa Jaak Uudmae e Viktor Saneyev ficaram nas duas primeiras posições. Até hoje essa disputa olímpica gera polêmicas. Recentemente, a Austrália exigiu uma investigação sobre o caso.
- Ele fez outros saltos espetaculares depois disso. E inclusive com metragem maior do que ele fez no México. Eu tinha muito pudor, até algum tempo atrás, em dizer que ele foi roubado, mas depois que confessaram (os fiscais), sou obrigado a dizer o que eu senti também. Que ele foi roubado, senão ele teria o recorde do mundo até hoje. Mas isso é coisa que já foi, infelizmente. O que tem que ficar é uma lição de coragem e de humildade que ele deixou. Um campeão na acepção da palavra - lembra Pedro de Toledo.
João era destemido, era um campeão na acepção da palavra
Pedro Toledo, técnico
As lembranças ainda mexem com a emoções do treinador. Hoje, Pedrão de Toledo vive em Guaratinguetá, afastado há 12 anos do atletismo. Segundo ele, não por escolha própria. Garante que tem uma vida rica em memórias, mas lamenta ter ficado distante da adrenalina que o esporte lhe trazia. A rotina é pacata, mas volta e meia ele tenta fazer algum tipo de exercício e frequenta o clube da cidade.
Na época do voo de João do Pulo não existia grande estrutura e tecnologia no atletismo. O técnico até fazia preparações fora do Brasil, mas acredita o que o recorde surgiu mesmo de uma dose cavalar de talento e não de uma rotina cansativa de treinamentos. Pedrão teve que entender seu pupilo, seu estilo de vida e até os seus limites.
- Ele era um bon-vivant. Treinava. Pouco. Treinava aquilo que o próprio corpo dele permitia que fizesse. Não adiantava pegar um livro de anotações de treinamento de caras espetaculares porque o João tinha o limite físico dele. Era dentro daquilo que ele rendia. Então, a minha sorte foi que aprendi e soube respeitar isso. No México, não houve modificação de tudo que ele vinha fazendo no Brasil. O que houve foi o emocional dele que ajudou muito. Ele cresceu com a responsabilidade. Era destemido, era um campeão na acepção da palavra. Esse negócio de tomar essas porcarias aí de doping etc, ele não precisava. Nunca precisou. Ele já foi abençoado. Já nasceu com tudo isso.
MORTE PRECOCE AOS 45 ANOS
Nascido em Pindamonhangaba (São Paulo), João do Pulo começou a treinar com Pedrão aos 18 anos. Antes, trabalhava como lavador de carros para ajudar em casa. Começou a ter resultados expressivos um ano depois. Mas teve que encerrar sua carreira antes do previsto por conta de um desastre. Foi em 1981, quando ainda tinha 27 anos, que um acidente de carro pôs o ponto final em seus saltos: sua perna direita teve que ser amputada. Morreu em 1999, um dia após completar 45 anos, com cirrose hepática e infecção generalizada.

em 1975 (Foto: Reprodução/SporTV)
O brasileiro abriu o caminho para outros triplistas. O mais notável até hoje é Jadel Gregório, que se tornou o recordista sul-americano da prova, com 17,90m, em 2007. Distante, Pedro Henrique de Toledo confessa não ficar pensando muito no passado, já que está afastado do esporte - não por sua vontade. Mas, mesmo alheio, aponta mudanças positivas que já são vistas.
- Agora eles se especializaram, têm alguma infraestrutura, têm máquinas e laboratórios. Os técnicos são mais competentes em função de tudo isso, de intercâmbios. A situação é melhor. O fato de não ter dado certo para mim não quer dizer que eu desejo que não dê certo para ninguém. Meu amor e o meu respeito são pelo esporte. As pessoas que dirigem são passageiras. A Confederação para mim sempre vai ser uma coisa que vou morrer gostando e respeitando. No momento, o presidente é muito acessível, um cara de uma formação, de um caráter. O Brasil vai se representar bem nas Olimpíadas, como todo país-sede, pela quantidade de pessoas envolvidas - diz Pedrão.
Quarenta anos passaram no olhar de quem acompanha o esporte. João Carlos de Oliveira já passou. Outros nomes que fizeram história também. Mas João, Prudêncio e Adhemar seguem vivendo nas marcas que deixaram registradas e, principalmente, nas portas que abriram para o esporte do país. João pode ter parado de saltar, mas o Pulo de 40 anos atrás seguirá sempre eternizado.
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