sábado, 7 de julho de 2012

CLASSICOS



Das defesas impossíveis ao salto trágico do sétimo andar de um prédio em Bonsucesso, goleiro se eterniza como personagem dos 100 anos de Fla-Flu

Na tribuna de imprensa, Nelson Rodrigues esqueceu que era ateu e quase rezou. Castilho estava caído, sentado na pequena área do Fluminense, com o rubro-negro Henrique trincando os dentes à sua frente, pronto para encher o pé e fazer o gol de empate no Maracanã lotado. Era só mais um Fla-Flu, como se existisse “só mais um Fla-Flu”, pelo Carioca de 1958. Sentado na grama, Castilho se agigantou.
“Quando parecia líquido, certo, fatal o tento rubro-negro, eis que Castilho sentado, ignominiosamente sentado, defendeu. Pasmem para o detalhe sublime: sentado, como se estivesse em casa, numa cadeira, lendo o gibi! Depois disso, eu passei, instantaneamente, a considerar Castilho um monstro horrendo, uma espécie de Drácula da bola”, espantou-se o maior dos cronistas do futebol ao relatar na “Manchete Esportiva” a vitória tricolor por 3 a 1 naquela tarde de novembro.
castilho fluminense centenário fla-flu (Foto: Agência Estado)Castilho, o amigo das traves: sorte e talento a serviço do Flu por duas décadas (Foto: Agência Estado)
Corta para 13 anos antes, junho de 1945, estádio de São Januário. Pelo Torneio Municipal, o Flamengo de Zizinho abriu 1 a 0 no primeiro tempo e emplacou no segundo uma sequência mágica de seis gols em 36 minutos para fechar o caixão em 7 a 0. Estava ali a maior goleada da história dos Fla-Flus, e o Tricolor percebeu que precisava de alguém para guardar suas traves. Na temporada seguinte foi buscar no Olaria um carioca de 18 anos, nascido em Bonsucesso. Durante duas décadas, Carlos José Castilho se tornaria ídolo absoluto nas Laranjeiras e um dos maiores goleiros do futebol brasileiro em todos os tempos.
Telefonei para o Dr. Paes Barreto e fui franco: se não houver operação, não poderei mais continuar jogando, assim não confio mais em mim. No dia seguinte dei entrada na Casa de Saúde. Eram 8h, Paes Barreto já me esperava. Antes da anestesia, ainda ouvi a última frase: 'Você é louco'"
Castilho, sobre a amputação de parte do dedo
Foram 699 partidas, ninguém jogou tantas vezes pelo Fluminense quanto ele. Elegante em campo, com a clássica camisa cinza, e também fora dele, quase sempre de terno. Foi obcecado em campo, treinando além do horário, e também fora dele, amputando parte do dedo mínimo para se livrar de uma lesão crônica. Foi contraditório em campo, sem repetir na Seleção o brilho que tinha no Flu, e também fora dele, saltando do sétimo andar de um prédio para o suicídio até hoje mal explicado que encerrou sua trajetória em fevereiro de 1987.
Gênio trágico, Castilho foi antes de mais nada um sortudo. E para explicar seu apelido é preciso saltar no tempo outra vez, até algum ponto obscuro da década de 50, quando um leiteiro carioca ganhou a Loteria de São João no meio do ano e, não satisfeito, repetiu a dose no Natal. Leiteria virou sinônimo de sorte, e a alcunha grudou no peito do goleiro tricolor como uma bola bem encaixada. Porque Castilho não jogava sozinho. Além de uma zaga com o calibre de Píndaro e Pinheiro, havia uma parceria quase sobrenatural com as traves.
- Era impressionante. Havia jogos em que três, quatro bolas batiam na trave. Mas tinha muito a ver com colocação. E trabalho. Ele trabalhava muito – lembra o jornalista João Máximo, em depoimento reproduzido no livro “Os 11 maiores goleiros do futebol brasileiro”, de Luís Augusto Símon.
Uma semana antes do milagre sentado no Fla-Flu de 1958, Castilho protagonizou um desses tais jogos com quatro bolas na trave. Foi uma vitória heroica por 1 a 0 sobre o América, e Nelson Rodrigues estava novamente na tribuna. Elegeu Leiteria como personagem da semana e cunhou, na crônica da partida, uma de suas frases mais famosas: “Sem o mínimo de sorte, o sujeito não consegue nem chupar um Chicabon.”
Castilho, com o dedo amputado, em jogo do Flu contra o São Cristóvão em 1957 (Foto: Reprodução site oficial do Fluminense )Castilho, com o dedo amputado
(Reprodução site oficial do Flu)
Nove dedos e meio
A sorte só não estava no dedo mindinho da mão esquerda. Ali se concentrou todo o azar de Castilho, que não conseguia curar uma lesão crônica. Em 1957, precisaria se afastar por dois meses para tratar o problema pela quinta vez. Tempo demais para tanto amor ao Tricolor, e o goleiro soprou um vendaval no departamento médico do clube: pediu para amputarem a parte de cima do dedo, o que permitiria o retorno aos campos em duas semanas. A grita da esposa Vilma e dos dirigentes criou um dilema.
- De um lado, minha convicção de que só a amputação resolveria o problema. O dedo mínimo não tem a menor interferência na segurança de qualquer goleiro. Do outro lado, a minha senhora e os médicos não concordavam. Telefonei para o Dr. Paes Barreto e fui franco: se não houver operação, não poderei mais continuar jogando, assim não confio mais em mim. No dia seguinte dei entrada na Casa de Saúde. Eram 8h, Paes Barreto já me esperava. Antes da anestesia, ainda ouvi a última frase: “Você é louco” – contou o goleiro em entrevista reproduzida no livro “Castilho Eternizado”, de Antônio Carlos Teixeira Rocha.
Passou a usar luvas e ainda se dava ao trabalho de preparar um enchimento com algodão e esparadrapo para substituir o pedaço amputado. Para completar, era daltônico e sofria para enxergar as bolas brancas à noite. Assim, com visão prejudicada e nove dedos e meio, foi bicampeão mundial com a seleção em 1958 e 1962 – ainda que sem jogar, na reserva de Gilmar. Já tinha ficado no banco para Barbosa na Copa de 1950, quando o Uruguai aprontou o Maracanazo, e foi titular em 1954, afogado em críticas após a derrota por 4 a 2 para a poderosa Hungria.
castilho fluminense centenário fla-flu (Foto: Agência Estado)A inovadora camisa cinza garantia a elegância de Castilho dentro do campo (Foto: Agência Estado)
Na seleção ficou marcado por não repetir as grandes atuações, mas no Fluminense tornou-se ídolo incontestável. Tri carioca, bi do Rio-São Paulo, campeão do Municipal e vencedor da Copa Rio contra equipes estrangeiras, virou São Castilho muito antes de São Marcos e foi chamado de Monstro muito antes de Thiago Silva. Fez mais do que o suficiente para ser eternizado no busto que recepciona sócios e torcedores logo na entrada da sede social das Laranjeiras.
Disputou Fla-Flus memoráveis, como a decisão do Carioca de 1963, recorde de público no clássico. Diante de 177 mil torcedores espremidos no Maracanã, fechou o gol no 0 a 0, mas ali o empate era do Flamengo, que quebrou um jejum de sete anos sem título.
Netos dos jogadores do primeiro Fla x Flu, Castilho (Foto: André Durão / Globoesporte.com)Na sede social das Laranjeiras, o busto do ídolo
tricolor (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
O último salto
Do Fluminense, ainda pulou para o Paysandu e, como treinador, comandou Vitória, Operário, Inter e Santos. Quando fechou com a seleção da Arábia Saudita, atravessava um momento delicado do segundo casamento, com Evelyna. Tinha fortes dores de cabeça e dava sinais de depressão. Em 2 de fevereiro de 1987, foi até Bonsucesso para visitar Vilma, com quem tinha sido casado por 30 anos e mantinha um relação de amizade. Ali deu seu último salto. Pulou da janela do sétimo andar, num episódio jamais esclarecido, e morreu aos 59 anos.
No imaginário tricolor, fica a imagem do goleiro de pé, envergando a camisa cinza, ou no máximo sentado na área, como na defesa emblemática de 1958. Naquele Fla-Flu, quando o Rubro-Negro ainda perseguia um gol que ao menos lhe mantivesse a cabeça erguida... pênalti no último minuto. Moacir na cobrança. E diante das palavras de Nelson Rodrigues, fica fácil adivinhar como terminou aquela tarde:
“Um pênalti equivale a um soco na cara do goleiro. O infeliz sofre um verdadeiro nocaute moral. Ontem, porém, nem Belzebu em pessoa conseguia varar Castilho!”

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